Uma nova denúncia de estupro coletivo, tornada pública nesta quarta-feira (8), volta a chamar a atenção sobre o problema da violência contra as mulheres no Piauí, Estado que tinha registrado outros dois casos chocantes do mesmo crime no intervalo de um ano.
Segundo a denúncia, uma garota de 14 anos foi violentada por um homem e três adolescentes em um banheiro de um ginásio poliesportivo de Pajeú do Piauí, cidade a 400 quilômetros de Teresina.
Duas semanas atrás - ou seja, na mesma época em que o estupro coletivo de uma menina de 16 anos no Rio veio à tona, chocando o país - uma jovem de 17 anos foi encontrada amordaçada com as próprias roupas após ter sido vítima de violência sexual em uma obra abandonada em Bom Jesus (a 635 km da capital). Os suspeitos são quatro adolescentes e um rapaz de 18 anos.
O primeiro caso da série consternou o Brasil em maio do ano passado. Em Castelo do Piauí, nos arredores de Teresina, quatro adolescentes com idades entre 15 e 17 anos foram estupradas, espancadas e jogadas de um penhasco. Uma delas morreu.
O que poucos sabem é que, embora tenha sido palco dessa série de crimes, o Piauí é considerado por grupos feministas locais e até pela ONU Mulheres, braço das Nações Unidas que promove a igualdade de gênero, referência no combate à violência contra a mulher. Algo que pode desafiar o senso comum.
"O Piauí é um dos Estados que prontamente aderiram às 'Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres - Feminicídios', que estabelecem uma série de procedimentos a serem adotados na apuração de responsabilidades criminais", explicou à BBC Brasil Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres no Brasil.
"Essas iniciativas não foram só uma resposta aos crimes ocorridos em Castelo, mas ampliaram o entendimento sobre feminicídio. Agora, o Piauí está investindo numa metodologia de investigação com perspectiva de gênero, com base na realidade local, numa parceria importante entre a polícia civil e a perícia."
A BBC Brasil listou as cinco principais necessidades que o Piauí tem identificado sobre o tema:
Uma das principais dificuldades das mulheres que sofrem algum tipo de violência (doméstica ou sexual) é a vergonha e o medo de ser julgada.
Segundo especialistas, o medo de serem estigmatizadas ao dar entrada em um hospital por causa de um estupro, por exemplo, leva muitas vítimas a só procurar ajuda dias após a agressão - ou a deixar de fazê-lo.
Para amenizar isso, o Piauí criou em 2006 o projeto dos Samvis (Serviços de Atenção às Mulheres Vítimas de Violência Sexual). Trata-se de áreas sigilosas, localizadas dentro de hospitais, onde as mulheres recebem os primeiros atendimentos médicos, fazem acompanhamento psicológico.
Nesses locais, elas podem até mesmo denunciar seus agressores - ou seja, sem precisar ir à polícia.
Foi o caso da vítima de estupro em Bom Jesus, no fim do mês passado. Após ser encontrada na obra, a jovem foi diretamente levada para o Samvis do Hospital Regional da cidade. Lá, além de receber atendimento médico e psicológico e fazer o exame pericial, a garota conversou com uma policial feminina chamada para ouvir seu depoimento e abrir a investigação sobre o caso.
"A sala aqui é anexa ao hospital, e temos um atendimento diferenciado pela questão do sigilo. A vítima é acolhida pela equipe de serviço social e psicologia. Aí temos também a equipe de enfermagem e médicos para os primeiros cuidados", contou à BBC Brasil Glícia de Moura Sousa, coordenadora do Samvis de Bom Jesus.
"Para evitar fazer vários atendimentos com essa vítima que já está traumatizada, os peritos se deslocam para cá. No caso dela, o próprio depoimento à polícia foi feito aqui, temos uma parceria com a delegacia."
O Samvis atende vítimas de violência em geral, como a doméstica - idosos, crianças e adolescentes também são acolhidos. O esforço é para que a maioria dos funcionários seja de mulheres.
Os centros, porém, ainda não existem em todas as cidades do Estado - apenas em Teresina, Parnaíba, Picos, Floriano, Bom Jesus, São Raimundo Nonato e Corrente.
2) Capacitar policiais para atuar em crimes de gênero
O caso do estupro coletivo no Rio chamou a atenção para um problema muito comum de vítimas que procuram a polícia: abordagens inadequadas, perguntas às vezes inapropriadas feitas à vítima e até mesmo o local em que o depoimento foi colhido - reclamações nesse sentido fizeram o delegado do caso ser afastado.
"Você tinha costume de participar de sexo em grupo?", foi uma das perguntas do delegado Alessandro Thiers, que ouviu o depoimento da jovem de 16 anos em uma sala envidraçada, com outros dois policiais homens e com a presença de sua namorada.
Para evitar esse tipo de comportamento na delegacia, o Piauí implementou em 2012 uma disciplina específica no curso de formação dos policiais: "Investigação Policial de Crimes de Gênero, Raça e Etnia". A ideia é fazer o agente estudar não só a lei, mas a questão racial ou de gênero que envolve alguns crimes.
"Não é só conhecer a Lei Maria da Penha, isso é o básico. Mas precisamos que eles saibam quais são as raízes da violência contra a mulher. Quais são as relações de gênero, por que ela sofre calada por anos. Se ele não tem capacitação de gênero, ele passa a não compreender esses aspectos", explica a promotora Silvia Chakian, especialista em Violência contra a Mulher.
No Piauí, essa capacitação de policiais ajuda a evitar a morte de muitas mulheres, avalia a subsecretária de Segurança Pública, Eugenia Villa, que é delegada.
"Quando a gente capacita o policial na perspectiva de gênero, a gente mostra que uma ameaça hoje ou uma agressão agora pode amanhã virar um feminicídio. Se a gente identifica isso antes, é possível combater e evitar o pior."
A iniciativa é defendida pela ONU Mulheres. "A formação de agentes públicos é um passo decisivo para garantir a perspectiva de gênero nas investigações e dar respostas a partir da realidade local, da natureza dos assassinatos, das vítimas e dos criminosos", observa Gasman.
O Núcleo Investigativo de Feminicídio da Polícia do Piauí foi criado antes da aprovação da Lei do Feminicídio, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff em março do ano passado. O objetivo dele é mapear os crimes contra mulheres e identificar os que ocorriam por questões de gênero, mas antes caíam na vala dos homicídios comuns.
"Nós não sabíamos quantas mulheres eram assassinadas por questão de gênero. Precisávamos vencer esse deficit, mostrar que as mulheres estavam sendo assassinadas por serem mulheres", explicou Villa.
"Hoje, nós temos esses dados. Em 2016, 65% dos assassinatos de mulheres (11 dos 17 de janeiro a março) foram feminicídio. Nós monitoramos todas as mortes e descobrimos que a maioria delas morreu por questão de gênero. Isso nos dá uma condição para entendermos como prevenir isso."
A ONU Mulheres destaca que o Mato Grosso do Sul e o Maranhão são os Estados ainda mais avançados nessa questão, porque o trabalho feito lá "já envolve o sistema de justiça e criminal".
4) Desenvolver pesquisas para entender a violência de gênero
A Polícia Civil do Piauí criou o Núcleo de Pesquisa em Violência de Gênero, departamento que mapeia todos os tipos de crime contra a mulher no Estado. A ideia é aproveitar esses dados para adotar estratégias mais efetivas no combate ao problema.
"Essas iniciativas são inovadoras e representam respostas diante da realidade de violência contra as mulheres no Piauí. Não é comum ver esse nível de proatividade da segurança pública com perspectiva de gênero", avalia a representante da ONU Mulheres.
"Descobrimos, por exemplo, que em 80% dos casos as mulheres estão sendo assassinadas dentro de casa pelos próprios maridos e aos fins de semana. E agora podemos criar ações mais assertivas para evitar isso", explica Villa.
Os dados do núcleo também revelaram, diz a subsecretária de Segurança Pública, que o número de registros de mulheres vítimas de violência no Estado supera em 14% o de lesões corporais no trânsito.
"O Estado faz políticas para o trânsito, tem toda uma estrutura para enfrentar acidentes e mortes nele. Mas e a mulher, que corre risco até dentro de casa? Já passou da hora da gente tratar isso com a devida atenção", diz Villa.
No ano passado, o Piauí foi o segundo Estado que mais registrou denúncias de violência contra a mulher pelo 180, o Disque Denúncia. Especialistas afirmam que, quanto melhor é o aparato público de defesa à mulher, mais denúncias tendem a aparecer.
É fato: trabalhar na conscientização das mulheres sobre a existência de um aparato legal para defendê-las é o primeiro passo para combater essa violência. E o Piauí fez isso, principalmente nos últimos dois anos.
"A gente vai pros meios de comunicação e passa a mostrar que as mulheres que usam medidas de urgência da Lei Maria da Penha (medidas de proteção, estão vivas). Fizemos campanhas para divulgar o 180 como instrumento de denúncia. Acho que isso tem encorajado as mulheres", conta a subsecretária de Segurança.
Fonte:http://noticias.uol.com.br/
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